segunda-feira, maio 21, 2007

Normas e Súmulas Vinculantes

Normas constitucionais

Rebeldia e espírito de desobediência contaminam juízes
por Érick V. Micheletti Felício
Publicações jurídicas especializadas, principalmente via internet, entre elas a Revista Consultor Jurídico, divulgaram os enunciados das oito primeiras Súmulas Vinculantes. Trata-se de textos editados pela Comissão de Jurisprudência do STF e que ainda não foram submetidos ao ministro Marco Aurélio, seu Presidente, ou mesmo, enviados para a apreciação da ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo.
Haverá, ainda, a necessidade de parecer do Procurador-Geral da República. Portanto, somente entrarão em vigor, referidas Súmulas, depois de aprovados os textos respectivos por, no mínimo, dois terços dos Ministros do Pretório Excelso, em Sessão Plenária.
Como a Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006, que instituiu o polêmico instrumento da Súmula Vinculante, tem como termo inicial da produção de seus efeitos o mês de março de 2007, deduziu-se que o efeito vinculativo de tais enunciados será definido, finalmente, até o final de abril do corrente ano, tudo de acordo com o trâmite previsto na Legislação mencionada e pertinente.
Para os advogados criminalistas, bem como para os juízes criminais, assume especial colorido o texto proposto da Súmula 5, cujo teor é o que segue:
“Para efeito de progressão no regime de cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.”
O subscritor já teve oportunidades várias de ressaltar, mediante artigos, manifestações e trabalhos doutrinários, a abusividade representada pela “desde sempre” inoportuna Súmula 698, do STF (cf. FELICIO, Érick V. Micheletti. Progressão de regimes: breves apontamentos em decorrência da Súmula 698 do STF e da reforma do art. 112 da Lei de Execução Penal, promovida pela Lei 10.792/2003. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 534, 23 de dezembro de 2004).
Do mesmo modo, também demonstrou, em manifestações anteriores, a possibilidade de se atribuir efeito erga omnes àquelas decisões do Plenário do Pretório Supremo que, a despeito de proferidas em “via de defesa” ou “difusa” ou de “exceção”, proporcionaram o abrangente e detido debate sobre a matéria constitucional.
Aliás, diga-se de passagem, antes mesmo do referido e polêmico julgamento de “via de defesa” pelo Plenário do STF, como alhures asseverado, e da redação da quinta Súmula Vinculante noticiada, considerada ainda a Súmula 698, do STF, muitos dos Tribunais Pátrios já se manifestavam, corretamente, contra a aplicação de tal regime imutável nefasto, por seus mais ilustrados e doutos membros, os quais ajudaram para que tal evolução, com seus julgados, fosse finalmente observada no âmbito do Excelso Pretório.
“Regime integralmente fechado no cumprir da pena em condenação por delito dito hediondo. A CF/88 veda a imposição de pena cruel, e o comando que uma pena seja cumprida inteiramente em regime fechado caracteriza crueldade, além de esbarrar na garantia constitucional da individualização da pena, bem assim afrontar as diretrizes maiores da execução da pena. Embargos acolhidos” (RJTJERGS 1777/59).
Crime hediondo — Regime prisional — Progressão — Admissibilidade, pois a Lei 9.455/97, ao admitir o benefício para os crimes de tortura, conferiu tratamento mais benigno à matéria regulada pela Lei 8.072/90 — Incidência da norma no processo de individualização da pena dos demais delitos mencionados no artigo 5º, XLIII, da CF em face do tratamento unitário que lhe conferiu o constituinte de 1988 — Observância do disposto no artigo 5º, LV, também da CF. (...) É dogma fundamental em Direito Penal a incidência retroativa da lex mitior, encontrando-se hoje entronizado em nossa Carta Magna, ao dispor que ‘a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu’ (artigo 5.º, XL). Se a Lei 9.455/97 admitiu a progressão do regime prisional para os crimes de tortura, conferindo tratamento mais benigno à matéria regulada pela Lei 8.072/90, é de rigor a sua incidência no processo de individualização da pena dos demais delitos mencionados no artigo 5.º, XLIII, da Constituição, em face do tratamento unitário que lhe conferiu o constituinte de 1988”(RT 767/537).
“Se a Lei 9.455/97 admitiu a progressão do regime prisional para os crimes de tortura, conferindo tratamento mais benigno à matéria regulada pela Lei 8.072/90, é de rigor a sua incidência no processo de individualização da pena dos demais delitos mencionados no artigo 5.º, XLIII, da Constituição, em face do tratamento unitário que lhe conferiu o constituinte de 1988” (RT 757/493-4).
“Agravo — Progressão de regime — Crime hediondo. Norma constitucional que cerceia direitos e garantias deve ser interpretada restritivamente, inclusive pelo legislador ordinário. O princípio da individualização da pena deve ser observado também na fase de execução, sendo absolutamente ilegítima a consideração do fato delituoso para fins de concessão dos benefícios executórios. A lei de combate ao crime organizado prevê o início de cumprimento da pena, seja qual for o crime, decorrente de quadrilha ou bando, em regime fechado, e a recente lei de tortura, crime equiparado aos hediondos, autoriza a progressão, com o que está diante do princípio isonômico, perdeu eficácia o artigo 2.º, § 1.º, da Lei dos Crimes Hediondo. Agravo provido” (JTAERGS 103/68-69).
No que se refere à desnecessidade de comunicação ao Senado, nos termos do artigo 52, inciso X, da CF/88, para o reconhecimento dos efeitos erga omnes da manifestação Plenária do STF proferida em via de defesa, tal foi reforçada pelo interessante e didático Voto do ministro Gilmar Mendes, nos autos da Reclamação 4.335-5/Acre, ajuizada pela Defensoria Pública contra uma decisão da Vara de Execuções Criminais da Capital daquele Estado, declarando-se, inclusive, como de índole “histórica” a providência do referido artigo constitucional, não mais determinante no atual contexto do Sistema Aberto de Normas Constitucionais.
Assim consignou o Ministro Gilmar Mendes, no sentido do exposto:
“Se o Supremo Tribunal pode, em ação direta de inconstitucionalidade, suspender, liminarmente, a eficácia de uma lei, até mesmo de uma Emenda Constitucional, por que haveria a declaração de inconstitucionalidade, proferida no controle incidental, valer tão-somente para as partes? (...) A única resposta plausível nos leva a crer que o instituto da suspensão pelo Senado assenta-se hoje em razão de índole exclusivamente histórica. (...) A natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental.” - (Reclamação 4.335-5 – Acre).
Cite-se, ainda, que os Projetos de Lei que tramitam atualmente no Congresso Nacional, visando à reforma da matéria, são unânimes em admitir a inconstitucionalidade da proibição de progressão. Tanto que, em seus textos, discordam apenas no que diz respeito ao intervalo temporal para ser adquirido tal direito subjetivo pelo condenado.
Enfim, a progressão é e será garantida como individualização, humanidade e proporcionalidade das penas, restando apenas o debate, que já é travado na Doutrina e no Legislativo, acerca do tempo necessário para sua efetivação.
Por tudo isso, causou espanto o voto do relator, bem como o desfecho do Incidente de Inconstitucionalidade 142.384-0/8-00, julgado pelo Órgão Especial do TJ-SP, tendo como origem a 3.ª Câmara Criminal deste mesmo Sodalício Bandeirante, afastando tal orientação majoritária do Pretório Excelso e que já encontrava respaldo também nos Tribunais Estaduais (inclusive, no âmbito de algumas Câmara Criminais do TJ-SP), invocando, entre outros temas, a necessidade de “harmonização de normas constitucionais opostas e do mesmo quilate”, esquecendo-se que, mediante dita harmonia, deve, em matéria de “natureza constitucional penal”, prevalecer, como ocorre no caso do Tratados Internacionais de Direitos Humanos, aquela mais benéfica à pessoa humana.
Tal rebeldia ou espírito de desobediência vem contaminando vários juízes monocráticos paulistas, os quais relutam em seguir o que, em breve, não poderão mais evitar por “paixões” ou “íntimas convicções eivadas”, e assim, terão que deixar de infligir maior sofrimento aos acusados em processo-crime, na maioria absoluta pobres, os quais precisariam bater nas portas dos Tribunais Superiores para o reconhecimento de direitos que poderiam ter sido, com um pouco de siso, desde logo observados por autoridades.
Terão que deixar, ainda, de afetar o chamado “princípio da intranscendência”, como violação dos direitos de familiares do acusado e condenado, que acabam, no Brasil, sofrendo os efeitos de tais injustiças.
A saída é simples: mantida a discordância, os legitimados deverão buscar a revogação da Súmula Vinculante em tela, mediante os instrumentos e modos previstos na Lei Específica sobre o assunto. Jamais, no entanto, internamente, poderão revogar orientação majoritária ou determinação vinculante de tribunal superior, o que revelaria, aliás, extrema, ilegal e perigosa vaidade!
Note-se que a progressão, aliás, em crimes hediondos, se não fosse a rebeldia injustificada, poderia ser reconhecida, preliminarmente, pelo próprio Relator de eventual recurso, com fulcro legal na sistemática do artigo 3.º do CPP, combinado com o artigo 557, § 1˚— A, do CPC.
É preciso fazer justiça, no sentido de se consignar que, felizmente, a insubordinação não contaminou toda a Corte Paulista ou seus Juízes de Primeiro Grau, apesar do esforço feito, inclusive por determinado grupo de Acusadores Oficiais.
Em São Paulo ainda é possível ter esperança na proficiência desses abnegados resistentes, ainda que minoria, aos discursos da “Lei e Ordem”. Estes devem, por sinal, demonstrar empenho em “abrir os olhos” dos demais, mantendo a tolerância e respeito às opiniões contrárias, mas demonstrando a impropriedade de muitos discursos verdadeiramente desumanos e torturantes, pois um erro não justificaria outro.
No entanto, o “alerta é vermelho”, necessitando haver uniformização de acordo com a hoje orientação majoritária do STF e, amanhã, Súmula Vinculante.
Afinal, a Justiça não pode ser confundida com o átrio do inferno, descrito na obra de Dante, onde os cidadãos que nela entram devem, obrigatoriamente, deixar fora toda e qualquer esperança, principalmente porque a Justiça brasileira estaria com isso, longe de qualquer comédia e ratificando um drama que insiste em não reconhecer, apesar de ver. E, como escreveu o grande Saramago, o pior de tudo é quando sabemos das coisas e não agimos.
Revista Consultor Jurídico, 21 de maio de 2007