quinta-feira, novembro 29, 2007

Processo não pode se fundamentar em denúncia anônima

Fora da lei

Denúncia anônima não pode fundamentar processo, diz AGU

por Priscyla Costa

Nenhum processo ou procedimento formal pode ser instaurado tendo como fundamento denúncia anônima. A conclusão é da Advocacia-Geral da União, que emitiu parecer sobre qual deve ser a postura do governo federal diante de qualquer acusação sem identificação da autoria.

A AGU foi instada a se pronunciar sobre a validade de procedimento administrativo aberto com base em denúncia anônima. Para o advogado-geral da União, José Antônio Dias Toffoli, acusação sem reconhecimento da autoria está cercada de “imprestabilidade jurídica”, porque a Constituição Federal veda o anonimato. (Clique aqui para ler o despacho assinado pelo advogado geral).

O (parecer, assinado pelo consultor da União Galba Velloso, sustenta ainda que a denúncia anônima produz “resultados nefastos” e que é dever da administração informar à parte atingida a suposta acusação, para que tome as providências que entender cabíveis, inclusive a da investigação e identificação da autoria.

O parecer é assinado pelo consultor da União, com despachos assinados pelo consultor-geral da União, Ronaldo Jorge Araújo Vieira Júnior, e o advogado-geral da União, José Antônio Dias Toffoli.

De acordo com o parecer da AGU, a administração pública não pode acolher uma iniciativa incompatível com a Constituição e que se choca com a legalidade, a moralidade e a transparência. Alega ainda que o legislador, quando proibiu o anonimato, não quis prestigiar a imoralidade, mas garantir a legalidade e a presunção constitucional de inocência.

“A cautela que se recomenda à administração há de ser entendida como o dever de não estimular o denuncismo, que abriga a injúria, a calúnia e a difamação. Constitui ilícito penal encorajar a prática de qualquer crime”, ressaltou Velloso.

O consultor Jorge Araújo foi em sentido contrário. Para fundamentar seu (despacho), citou a decisão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inquérito 1.957, julgado pelo Pleno em 11 de novembro de 2005. Neste julgamento, a questão do efeito jurídico da denúncia anônima foi colocada como questão de ordem pelo ministro Marco Aurélio.

Na ocasião, Marco Aurélio afirmou que a Constituição repugna o anonimato porque, se a denúncia for comprovadamente falsa, o denunciado não tem a quem responsabilizar civil ou criminalmente. Cezar Peluso seguiu o mesmo entendimento. Afirmou que a denúncia anônima é um desvalor constitucional e, portanto, não pode dar ensejo à produção de qualquer efeito jurídico.

Carlos Ayres Britto, Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim (à época presidente do STF) e Carlos Velloso (relator) entenderam que a denúncia, mesmo sendo anônima, seria capaz de produzir efeitos jurídicos se houvesse verossimilhança nos fatos relatados.

De acordo com Jorge Araújo, foi Celso de Mello quem deu solução para a controvérsia. Ele reconheceu que, no caso, há colisão entre dois preceitos fundamentais (preservação da intimidade X direito à reparação), mas afirmou que é dever do Estado averiguar o conteúdo da denúncia, para preservar outros direitos também constitucionalmente reconhecidos.

Celso de Mello sinalizou que a solução é simples. Basta adotar o princípio da proporcionalidade. Em outras palavras, ignora-se a denúncia impregnada de rancores e ressentimentos contra quem toma decisões que sempre desagradam alguém ou algum grupo social. Por outro lado, se a denúncia pode preservar vidas, impedir violações graves à saúde pública ou proteger o patrimônio público, deve ser averiguada.

Para o consultor, Celso de Mello sinalizou que, nessa última hipótese, a denúncia anônima “não é o fim da investigação, mas início, precário, que deve ser cercado de todas as cautelas possíveis para que, no caso de falsidade, não produza danos irreparáveis à dignidade e à honra subjetiva e objetiva de qualquer um”. De acordo com ele, “cabe ao agente público, no exercício de suas atribuições, temperar os elementos de decisão postos à sua disposição para que forme sua convicção”.

Repercussão

Especialistas ouvidos pela reportagem da revista Consultor Jurídico afirmam que a ferramenta, se usada com cautela, pode ser muito útil. É o caso do Disque-Denúncia. Segundo Sérgio Marcos Roque, presidente da Associação dos Delegados do Estado de São Paulo (Adpesp), hoje, 70% dos casos resolvidos pela Polícia tiveram origem no Disque-Denúncia.

“A delação anônima é uma ferramenta tão importante para a Polícia que já não se consegue imaginar trabalhar sem ela. Mas é claro que não pode ser usada como prova e precisa de investigação preliminar, antes de ser formalizada. A Polícia toma o cuidado de agir assim. Toda denúncia recebida é antes apurada. Só é levada para as autoridades competentes, se ficar comprovada sua veracidade”, diz.

Para o promotor de Justiça Raul de Godói Filho, autor de denúncias contra integrantes da suposta organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), a denúncia anônima é válida porque serve de base para investigação de crimes que, sem essa ferramenta, dificilmente seriam resolvidos. De acordo com o promotor, o MP é pioneiro do Disque-Denúncia e apóia esse tipo de delação.

“Quem não gosta de denúncia anônima é advogado porque seus clientes são descobertos por meio dessa ferramenta. Advogado não entende que as pessoas preferem o anonimato por temerem represálias.” Segundo o promotor, até mesmo as denúncias com nítido caráter político precisam ser apuradas. “Se há delação, há suspeita”, afirma.

O criminalista Mário de Oliveira Filho tem clientes que respondem Ação Penal, cuja suspeita começou com uma denúncia anônima. Ele conta que o dono de uma clínica de estética chegou a ser condenado por exercício ilegal da Medicina e a clínica foi fechada. Nesse caso, cada carta anônima que chegava até a Polícia era transformada em Inquérito. Os inquéritos resultaram em Ação Penal e a Ação Penal, em condenação, já transitada em julgado.

“A denúncia anônima é válida porque sempre elucida fatos e ajuda na segurança da população. E é claro que é obrigação da Polícia, sempre que receber uma denúncia anônima, se certificar da procedência, para que a denúncia não se transforme em uma ferramenta política.”

Revista Consultor Jurídico, 28 de novembro de 2007

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